Durante o reinado do rei
Mabdar viveu na Babilônia
um jovem chamado Zadig.
Era formoso, rico e
naturalmente de bom
coração. No momento em
que esta história começa ele
estava viajando a pé para
ver o mundo e aprender
filosofia e sabedoria.
Mas até esse momento tinha
encontrado tanta miséria e
suportado tantos e terríveis
desastres que estava
tentado a rebelar-se contra
a vontade do céu e acreditar
que a Providência, que rege
o mundo, desdenhava o
Bem e permitia que o Mal
prosperasse. Neste triste
estado de espírito estava ele
caminhando um dia às
margens do Eufrates. Por
casualidade encontrou um
venerável ermitão cuja
barba, branca como a neve,
descia até a cintura. Em sua
mão o ancião levava um
rolo de pergaminho que lia
com atenção. Zadig parou e
fez-lhe uma reverência. O
ermitão devolveu-lhe a
saudação com um ar tão
bondoso e tão nobre que
Zadig sentiu curiosidade de
falar com ele. Perguntou-lhe
então o que ele estava
lendo:
- É o Livro do Destino -
disse o ermitão. - Você
gostaria de ler este livro?
Entregou o livro a Zadig,
mas este, apesar de
conhecer uma dezena de
línguas, não pode entender
uma só palavra do livro.
Sua curiosidade foi
aumentando.
- Você parece ter
problemas... - disse o
bondoso ermitão.
- Sim, infelizmente tenho -
disse Zadig. - E tenho razões
para estar assim.
- Se me permite - disse o
ancião, - eu o
acompanharei. Quem sabe
poderei ser-lhe útil. `As
vezes sou capaz de consolar
os aflitos.
Zadig sentiu um profundo
respeito pela aparência, a
barba branca e o
pergaminho misterioso do
velho ermitão, e percebeu
que a conversa dele era a
de uma mente superior. O
velho falou do destino, da
justiça, da moral, do
principal bem na vida, da
debilidade humana, da
virtude e do vício, com tal
poder de eloqüência que
Zadig se sentiu atraído por
uma espécie de encanto, e
suplicou ao eremita que não
o deixasse até que
regressassem à Babilônia.
- Peço-lhe o mesmo favor -
disse o ermitão. - Prometa-
me que, haja o que houver,
você permanecerá em minha
companhia por alguns dias.
Zadig prometeu, e juntos se
puseram em marcha.
Naquela noite os viajantes
chegaram a uma grande
mansão. O eremita pediu
comida e alojamento para
ele e seu companheiro. O
porteiro, que poderia ser
confundido com um
príncipe, os introduziu com
um desdenhoso ar de boas-
vindas. O chefe dos
serventes lhe mostrou os
magníficos aposentos, e
então lhes foi permitido
sentar-se em um canto da
mesa, na qual estava o
senhor da mansão, que nem
se deu ao trabalho de olhá-
los. Mesmo assim, iguarias
em abundância lhes foram
servidas, e depois de cear
lavaram as mãos em uma
bacia de ouro incrustada
com esmeraldas e rubis.
Foram então levados para
passar a noite em um
formoso aposento. Na
manhã seguinte, antes de
deixarem o castelo, um
servente trouxe uma peça
de ouro para cada um.
- O senhor da casa - disse
Zadig quando estavam
caminhando - parece ser um
homem generoso, ainda que
um pouco arrogante, e
pratica uma nobre
hospitalidade.
Enquanto falava com ele se
deu conta de que uma
espécie de bolsa grande que
o eremita levava parecia
agora abarrotada. Dentro
dela estava a bacia de ouro
incrustada de pedras
preciosas que o velho havia
furtado. Zadig ficou pasmo,
mas não disse nada.
Ao meio-dia o eremita
parou em frente a uma
pequena casa onde vivia um
rico avarento e, mais uma
vez pediu hospedagem. Um
velho criado, usando um
puído casaco, os recebeu
muito grosseiramente,
acomodou-os no estábulo e
pôs diante deles umas
poucas azeitonas meio
estragadas, uns pedaços de
pão dormido e cerveja
muito amarga.
O ermitão comeu e bebeu
com o mesmo prazer que
tivera na noite anterior.
Quando terminaram o
ermitão se dirigiu ao criado,
que não havia tirado os
olhos deles para assegurar-
se de que nada roubariam,
deu-lhe as duas peças de
ouro que haviam recebido
naquela manhã e agradeceu
a sua atenção,
acrescentando:
- Tenha a bondade de
permitir que eu veja seu
amo.
O atônito servo os conduziu
para dentro da casa.
- Poderosíssimo senhor -
disse o ermitão, - eu
gostaria de apresentar meus
humildes agradecimentos
pela nobre maneira com
que nos recebeu. Eu suplico
que aceite esta bacia de
ouro como demonstração
de minha gratidão.
O miserável avarento quase
caiu da cadeira, de tão
assombrado que ficou. O
ermitão, sem esperar que
ele se recobrasse, retirou-se
rapidamente com seu
companheiro.
- Santo Pai - disse Zadig, - o
que significa tudo isso? Para
mim você não se parece em
nada aos outros homens.
Você rouba uma bacia de
ouro com jóias de um
senhor que nos recebe
magnificamente e a dá a um
tacanho que o trata
indignamente.
- Meu filho - replicou o
ermitão, - esse poderoso
senhor que só recebe os
viajantes por vaidade e para
ostentar suas riquezas de
agora em diante se fará
mais sábio, e, por outro
lado, o miserável será
ensinado a praticar a
hospitalidade. Não se
espante com nada, e siga-
me.
Zadig não sabia se estava
tratando com o mais sábio
ou com o mais tolo dos
homens. Mas o ermitão
falou com tal convicção que
Zadig, preso a sua
promessa, não teve outra
escolha senão seguí-lo.
Nessa noite chegaram a
uma casa agradável, de
aspecto simples, que não
mostrava sinais de fartura
nem de avareza. O dono era
um filósofo que havia
abandonado o mundo e
estudava, pacificamente, as
leis da virtude e da
sabedoria. Era um homem
feliz e contente. Ele havia
criado esse calmo refúgio
para seu prazer e nele
recebeu os estrangeiros com
uma generosidade que não
mostrava sinais de
ostentação. Ele mesmo os
conduziu a um quarto
confortável, onde os fez
descansar alguns instantes,
e então veio buscá-los para
servir-lhes uma delicada
ceia.
Nas conversas que
mantiveram entre si,
concordaram que os
assuntos deste mundo nem
sempre eram regulados
pelas opiniões dos homens
mais sábios. O ermitão, por
sua parte, sustentava que os
caminhos da Providência
estavam envoltos em
mistério e que os homens
faziam mal em emitir
julgamento sobre um
universo do qual só
conheciam uma parte muito
pequena. Zadig se
perguntava como uma
pessoa que cometia atos tão
loucos podia pensar tão
corretamente.
Finalmente, depois de uma
conversa tão agradável
quanto instrutiva, o
anfitrião conduziu os
viajantes a seus quartos e
agradeceu ao céu por enviar
dois visitantes tão sábios e
virtuosos.
Ofereceu-lhes algum
dinheiro, mas o fez com
tanta franqueza que eles
não puderam se sentir
ofendidos. O velho recusou
e se despediu, pois desejava
partir para a Babilônia ao
nascer do dia. Separaram-se
em tom cordial, e Zadig
estava cheio de agradáveis
sentimentos por um homem
tão amistoso.
Enquanto estavam em seu
quarto, Zadig e o ermitão
passaram algum tempo
elogiando o anfitrião. Ao
amanhecer o ancião
despertou seu companheiro,
dizendo:
- Devemos ir. Mas enquanto
todos ainda estão dormindo
desejo deixar a este digno
homem um sinal de minha
estima.
Com estas palavras, pegou
uma tocha e deitou fogo à
casa.
Zadig começou a gritar
horrorizado e teria
impedido esse terrível ato,
mas o ermitão, com uma
força superior, o deteve. A
casa se tornou uma
fogueira, e o velho, que
agora estava bem longe com
seu companheiro, olhou
calmamente para a pilha
fumegante.
- O céu seja louvado! -
gritou. - A casa de nosso
amável anfitrião está
destruída de ponta a ponta!
Ao ouvir estas palavras,
Zadig não sabia se chorava
ou se ria; se chamava o
venerável de velhaco, se o
golpeava ou se corria para
longe dali, mas ele não fez
nenhuma destas coisas.
Ainda subjugado pela
aparência superior do
ermitão, seguiu-o contra
sua própria vontade até a
hospedagem seguinte. Desta
vez chegaram à residência
de uma boa e caridosa viúva
que tinha um sobrinho de
14 anos, sua única
esperança e alegria. Ela fez
tudo o que pode pelos
viajantes.
Na manhã seguinte pediu a
seu sobrinho que os guiasse
na travessia de uma certa
ponte em ruínas, perigosa
de se cruzar. O jovem os
conduziu, ansioso por
agradá-los.
- Venha - disse o eremita,
quando eles estavam no
meio da ponte,
- devo mostrar minha
gratidão para com sua tia.
Enquanto falava, ele pegou
o jovem pelos cabelos e o
atirou no rio.
O jovem caiu, reapareceu
por um instante na
superfície da água e logo foi
tragado pele corrente.
- Oh, monstro! - exclamou
Zadig. - Você é o mais
detestável dos homens!
- Você me prometeu ter
mais paciência -
interrompeu o velho. -
Escute!
Embaixo das ruínas daquela
casa que a Providência
achou conveniente por em
chamas, o dono descobrirá
um enorme tesouro;
enquanto o jovem, cuja
existência a Providência
cortou, teria matado a tia
em um ano e a você em
dois anos.
- Quem lhe disse isto,
bárbaro? - gritou Zadig. -
Ainda que você tenha lido
isso no Livro do Destino,
quem lhe deu poder para
afogar um jovem que nunca
lhe fez nada?
Enquanto falava, Zadig viu
que o ancião já não tinha
mais barba e que seu rosto
tinha se tornado jovem e
belo. Seu traje de eremita
havia desaparecido, quatro
asas brancas cobriam a sua
majestosa forma e
brilhavam com ofuscante
esplendor.
- Anjo do Céu! - gritou
Zadig. - Você então desceu
do céu para ensinar a um
mortal extraviado a
submeter-se às leis eternas?
- Os homens - replicou o
anjo Jezrael - julgam todas
as coisas sem
conhecimento, e você é, de
todos os homens, o mais
merecedor de ser
esclarecido. O mundo
imagina que o jovem que
acaba de perecer caiu por
acidente na água e que a
casa do filósofo se
incendiou por acaso.
Mas a causalidade não
existe: tudo é prova, castigo
ou profecia.
Frágil mortal! Pare de
questionar e de se rebelar
contra o que você deveria
adorar!
Depois de dizer estas
palavras, o anjo alçou vôo
até o céu e Zadig se
prostrou ajoelhado.
Mabdar viveu na Babilônia
um jovem chamado Zadig.
Era formoso, rico e
naturalmente de bom
coração. No momento em
que esta história começa ele
estava viajando a pé para
ver o mundo e aprender
filosofia e sabedoria.
Mas até esse momento tinha
encontrado tanta miséria e
suportado tantos e terríveis
desastres que estava
tentado a rebelar-se contra
a vontade do céu e acreditar
que a Providência, que rege
o mundo, desdenhava o
Bem e permitia que o Mal
prosperasse. Neste triste
estado de espírito estava ele
caminhando um dia às
margens do Eufrates. Por
casualidade encontrou um
venerável ermitão cuja
barba, branca como a neve,
descia até a cintura. Em sua
mão o ancião levava um
rolo de pergaminho que lia
com atenção. Zadig parou e
fez-lhe uma reverência. O
ermitão devolveu-lhe a
saudação com um ar tão
bondoso e tão nobre que
Zadig sentiu curiosidade de
falar com ele. Perguntou-lhe
então o que ele estava
lendo:
- É o Livro do Destino -
disse o ermitão. - Você
gostaria de ler este livro?
Entregou o livro a Zadig,
mas este, apesar de
conhecer uma dezena de
línguas, não pode entender
uma só palavra do livro.
Sua curiosidade foi
aumentando.
- Você parece ter
problemas... - disse o
bondoso ermitão.
- Sim, infelizmente tenho -
disse Zadig. - E tenho razões
para estar assim.
- Se me permite - disse o
ancião, - eu o
acompanharei. Quem sabe
poderei ser-lhe útil. `As
vezes sou capaz de consolar
os aflitos.
Zadig sentiu um profundo
respeito pela aparência, a
barba branca e o
pergaminho misterioso do
velho ermitão, e percebeu
que a conversa dele era a
de uma mente superior. O
velho falou do destino, da
justiça, da moral, do
principal bem na vida, da
debilidade humana, da
virtude e do vício, com tal
poder de eloqüência que
Zadig se sentiu atraído por
uma espécie de encanto, e
suplicou ao eremita que não
o deixasse até que
regressassem à Babilônia.
- Peço-lhe o mesmo favor -
disse o ermitão. - Prometa-
me que, haja o que houver,
você permanecerá em minha
companhia por alguns dias.
Zadig prometeu, e juntos se
puseram em marcha.
Naquela noite os viajantes
chegaram a uma grande
mansão. O eremita pediu
comida e alojamento para
ele e seu companheiro. O
porteiro, que poderia ser
confundido com um
príncipe, os introduziu com
um desdenhoso ar de boas-
vindas. O chefe dos
serventes lhe mostrou os
magníficos aposentos, e
então lhes foi permitido
sentar-se em um canto da
mesa, na qual estava o
senhor da mansão, que nem
se deu ao trabalho de olhá-
los. Mesmo assim, iguarias
em abundância lhes foram
servidas, e depois de cear
lavaram as mãos em uma
bacia de ouro incrustada
com esmeraldas e rubis.
Foram então levados para
passar a noite em um
formoso aposento. Na
manhã seguinte, antes de
deixarem o castelo, um
servente trouxe uma peça
de ouro para cada um.
- O senhor da casa - disse
Zadig quando estavam
caminhando - parece ser um
homem generoso, ainda que
um pouco arrogante, e
pratica uma nobre
hospitalidade.
Enquanto falava com ele se
deu conta de que uma
espécie de bolsa grande que
o eremita levava parecia
agora abarrotada. Dentro
dela estava a bacia de ouro
incrustada de pedras
preciosas que o velho havia
furtado. Zadig ficou pasmo,
mas não disse nada.
Ao meio-dia o eremita
parou em frente a uma
pequena casa onde vivia um
rico avarento e, mais uma
vez pediu hospedagem. Um
velho criado, usando um
puído casaco, os recebeu
muito grosseiramente,
acomodou-os no estábulo e
pôs diante deles umas
poucas azeitonas meio
estragadas, uns pedaços de
pão dormido e cerveja
muito amarga.
O ermitão comeu e bebeu
com o mesmo prazer que
tivera na noite anterior.
Quando terminaram o
ermitão se dirigiu ao criado,
que não havia tirado os
olhos deles para assegurar-
se de que nada roubariam,
deu-lhe as duas peças de
ouro que haviam recebido
naquela manhã e agradeceu
a sua atenção,
acrescentando:
- Tenha a bondade de
permitir que eu veja seu
amo.
O atônito servo os conduziu
para dentro da casa.
- Poderosíssimo senhor -
disse o ermitão, - eu
gostaria de apresentar meus
humildes agradecimentos
pela nobre maneira com
que nos recebeu. Eu suplico
que aceite esta bacia de
ouro como demonstração
de minha gratidão.
O miserável avarento quase
caiu da cadeira, de tão
assombrado que ficou. O
ermitão, sem esperar que
ele se recobrasse, retirou-se
rapidamente com seu
companheiro.
- Santo Pai - disse Zadig, - o
que significa tudo isso? Para
mim você não se parece em
nada aos outros homens.
Você rouba uma bacia de
ouro com jóias de um
senhor que nos recebe
magnificamente e a dá a um
tacanho que o trata
indignamente.
- Meu filho - replicou o
ermitão, - esse poderoso
senhor que só recebe os
viajantes por vaidade e para
ostentar suas riquezas de
agora em diante se fará
mais sábio, e, por outro
lado, o miserável será
ensinado a praticar a
hospitalidade. Não se
espante com nada, e siga-
me.
Zadig não sabia se estava
tratando com o mais sábio
ou com o mais tolo dos
homens. Mas o ermitão
falou com tal convicção que
Zadig, preso a sua
promessa, não teve outra
escolha senão seguí-lo.
Nessa noite chegaram a
uma casa agradável, de
aspecto simples, que não
mostrava sinais de fartura
nem de avareza. O dono era
um filósofo que havia
abandonado o mundo e
estudava, pacificamente, as
leis da virtude e da
sabedoria. Era um homem
feliz e contente. Ele havia
criado esse calmo refúgio
para seu prazer e nele
recebeu os estrangeiros com
uma generosidade que não
mostrava sinais de
ostentação. Ele mesmo os
conduziu a um quarto
confortável, onde os fez
descansar alguns instantes,
e então veio buscá-los para
servir-lhes uma delicada
ceia.
Nas conversas que
mantiveram entre si,
concordaram que os
assuntos deste mundo nem
sempre eram regulados
pelas opiniões dos homens
mais sábios. O ermitão, por
sua parte, sustentava que os
caminhos da Providência
estavam envoltos em
mistério e que os homens
faziam mal em emitir
julgamento sobre um
universo do qual só
conheciam uma parte muito
pequena. Zadig se
perguntava como uma
pessoa que cometia atos tão
loucos podia pensar tão
corretamente.
Finalmente, depois de uma
conversa tão agradável
quanto instrutiva, o
anfitrião conduziu os
viajantes a seus quartos e
agradeceu ao céu por enviar
dois visitantes tão sábios e
virtuosos.
Ofereceu-lhes algum
dinheiro, mas o fez com
tanta franqueza que eles
não puderam se sentir
ofendidos. O velho recusou
e se despediu, pois desejava
partir para a Babilônia ao
nascer do dia. Separaram-se
em tom cordial, e Zadig
estava cheio de agradáveis
sentimentos por um homem
tão amistoso.
Enquanto estavam em seu
quarto, Zadig e o ermitão
passaram algum tempo
elogiando o anfitrião. Ao
amanhecer o ancião
despertou seu companheiro,
dizendo:
- Devemos ir. Mas enquanto
todos ainda estão dormindo
desejo deixar a este digno
homem um sinal de minha
estima.
Com estas palavras, pegou
uma tocha e deitou fogo à
casa.
Zadig começou a gritar
horrorizado e teria
impedido esse terrível ato,
mas o ermitão, com uma
força superior, o deteve. A
casa se tornou uma
fogueira, e o velho, que
agora estava bem longe com
seu companheiro, olhou
calmamente para a pilha
fumegante.
- O céu seja louvado! -
gritou. - A casa de nosso
amável anfitrião está
destruída de ponta a ponta!
Ao ouvir estas palavras,
Zadig não sabia se chorava
ou se ria; se chamava o
venerável de velhaco, se o
golpeava ou se corria para
longe dali, mas ele não fez
nenhuma destas coisas.
Ainda subjugado pela
aparência superior do
ermitão, seguiu-o contra
sua própria vontade até a
hospedagem seguinte. Desta
vez chegaram à residência
de uma boa e caridosa viúva
que tinha um sobrinho de
14 anos, sua única
esperança e alegria. Ela fez
tudo o que pode pelos
viajantes.
Na manhã seguinte pediu a
seu sobrinho que os guiasse
na travessia de uma certa
ponte em ruínas, perigosa
de se cruzar. O jovem os
conduziu, ansioso por
agradá-los.
- Venha - disse o eremita,
quando eles estavam no
meio da ponte,
- devo mostrar minha
gratidão para com sua tia.
Enquanto falava, ele pegou
o jovem pelos cabelos e o
atirou no rio.
O jovem caiu, reapareceu
por um instante na
superfície da água e logo foi
tragado pele corrente.
- Oh, monstro! - exclamou
Zadig. - Você é o mais
detestável dos homens!
- Você me prometeu ter
mais paciência -
interrompeu o velho. -
Escute!
Embaixo das ruínas daquela
casa que a Providência
achou conveniente por em
chamas, o dono descobrirá
um enorme tesouro;
enquanto o jovem, cuja
existência a Providência
cortou, teria matado a tia
em um ano e a você em
dois anos.
- Quem lhe disse isto,
bárbaro? - gritou Zadig. -
Ainda que você tenha lido
isso no Livro do Destino,
quem lhe deu poder para
afogar um jovem que nunca
lhe fez nada?
Enquanto falava, Zadig viu
que o ancião já não tinha
mais barba e que seu rosto
tinha se tornado jovem e
belo. Seu traje de eremita
havia desaparecido, quatro
asas brancas cobriam a sua
majestosa forma e
brilhavam com ofuscante
esplendor.
- Anjo do Céu! - gritou
Zadig. - Você então desceu
do céu para ensinar a um
mortal extraviado a
submeter-se às leis eternas?
- Os homens - replicou o
anjo Jezrael - julgam todas
as coisas sem
conhecimento, e você é, de
todos os homens, o mais
merecedor de ser
esclarecido. O mundo
imagina que o jovem que
acaba de perecer caiu por
acidente na água e que a
casa do filósofo se
incendiou por acaso.
Mas a causalidade não
existe: tudo é prova, castigo
ou profecia.
Frágil mortal! Pare de
questionar e de se rebelar
contra o que você deveria
adorar!
Depois de dizer estas
palavras, o anjo alçou vôo
até o céu e Zadig se
prostrou ajoelhado.