I. O FATO DAS AGLOMERAÇÕES
Há um fato que, para bem ou para mal, é o mais importante na vida pública européia da hora presente.
Este fato é o advento das massas ao pleno poderio social. Como as massas, por definição, não devem
nem podem dirigir sua própria existência, e menos reger a sociedade, quer dizer-se que a Europa sofre
agora a mais grave crise que a povos, nações, culturas, cabe padecer. Esta crise sobreveio mais de uma
vez na história. Sua fisionomia e suas conseqüências são conhecidas. Também se conhece seu nome.
Chama-se a rebelião das massas.
Para a inteligência do formidável fato convém que se evite dar, desde já, às palavras "rebelião",
"massas", "poderio social", etc. um significado exclusivo ou primariamente político. A vida pública não é
só política, mas, ao mesmo tempo e ainda antes, intelectual, moral, econômica, religiosa; compreende
todos os usos coletivos e inclui o modo de vestir e o modo de gozar.
Talvez a melhor maneira de aproximar-se a este fenômeno histórico consista em referir-nos a uma
experiência visual, sublinhando uma feição de nossa época que é visível com os olhos da cara.
Simplicíssima de enunciar, ainda que não de analisar, eu a denomino o fato da aglomeração, do
"cheio". As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes.
Os trens, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As
salas dos médicos famosos, cheias de enfermos. Os espetáculos, desde que não sejam muito
extemporâneos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não era problema,
começa a sê-lo quase de contínuo: encontrar lugar.
Nada mais. Há fato mais simples, mais notório, mais constante, na vida atual? Vamos agora puncionar
o corpo trivial desta observação, e nos surpreenderá ver como dele brota um repuxo inesperado, onde a
branca luz do dia, deste dia, do presente, se decompõe em todo o seu rico cromatismo interior.
Que é o que vemos e ao vê-lo nos surpreende tanto? Vemos a multidão, como tal, possuidora dos
locais e utensílios criados pela civilização. Apenas refletimos um pouco, nos surpreendemos de nossa
surpresa. Mas quê, não é o ideal? O teatro tem suas localidades para que se ocupem; portanto, para que a
sala esteja cheia. E do mesmo modo os assentos o vagão ferroviário e seus quartos o hotel. Sim; não há
dúvida. Mas o fato é que antes nenhum destes estabelecimentos e veículos costumavam estar cheios, e
agora transbordam, fica fora gente afanosa de usufruí-los. Embora o fato seja lógico, natural, não se pode
desconhecer que antes não acontecia e agora sim; portanto, que houve uma mudança, uma inovação, a
qual justifica, pelo menos no primeiro momento, nossa surpresa.
Surpreender-se, estranhar, é começar a entender. E o esporte e o luxo específico do intelectual. Por
isso sua atitude gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no
mundo é estranho e é maravilhoso para umas pupilas bem abertas. Isso, maravilhar-se, é a delícia vedada
ao futebolista e que, ao contrário, leva o intelectual pelo mundo em perpétua embriaguez de visionário.
Seu atributo são os olhos em pasmo. Por isso, os antigos deram a Minerva a coruja, o pássaro com os
olhos sempre deslumbrados.
A aglomeração, ou cheio, antes não era freqüente. Por que o é agora?
Os componentes dessas multidões não surgiram do nada. Aproximadamente, o mesmo número de
pessoas existia há quinze anos. Depois da guerra pareceria natural que esse número fosse menor. Aqui
topamos, entretanto, com a primeira nota importante. Os indivíduos que integram estas multidões
preexistiam, mas não como multidão. Repartidos pelo mundo em pequenos grupos, ou solitários,
levavam uma vida, pelo visto, divergente, dissociada, distante. Cada qual - indivíduo ou pequeno grupo -
ocupava o lugar, talvez o seu, no campo, na aldeia, na vila, no bairro da grande cidade.
Agora, de repente, aparecem sob a espécie de aglomeração, e nossos olhos vêm por toda a parte
multidões. Por toda a parte? Não, não; precisamente nos lugares melhores, criação realmente refinada da
cultura humana, reservados antes a grupos menores, em definitiva, a minorias.
A multidão, de repente, tornou-se visível, e instalou-se nos lugares preferentes da sociedade. Antes, se
existia, passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social; agora adiantou-se até às gambiarras, ela
é o personagem principal. Já não há protagonistas: só há coro.
O conceito de multidão é quantitativo e visual. Traduzamo-lo, sem alterá-lo, à terminologia
sociológica. Então achamos a idéia de massa social. A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois
fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente
qualificados. A massa é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas. Não se entenda, pois, por
massas só nem principalmente "as massas operárias ". Massa é "o homem médio". Deste modo se
converte o que era meramente quantidade - a multidão - numa determinação qualitativa: é a qualidade
comum, é o mostrengo social, é o homem enquanto não se diferencia de outros homens, mas que repete
em si um tipo genérico. Que ganhamos com esta conversão da quantidade para a qualidade? Muito
simples: por meio desta compreendemos a gênese daquela. E evidente, até acaciano, que a formação
normal de uma multidão implica a coincidência de desejos, idéias, de modo de ser nos indivíduos que a
integram. Dir-se-á que é o que acontece com todo grupo social, por seleto que pretenda ser. Com efeito;
mas há uma diferença essencial.
Nos grupos que se caracterizam por não ser multidão e massa, a coincidência efetiva de seus membros
consiste em algum desejo, idéia ou ideal, que por si exclui o grande número. Para formar uma minoria,
seja qual seja, é preciso que antes cada qual se separe da multidão por razões essenciais, relativamente
individuais. Sua coincidência com os outros que formam a minoria é, pois, secundário, posterior a
haver-se cada qual singularizado, e é, portanto, em boa parte uma coincidência em não coincidir. Há
casos em que esse caráter singularizador do grupo aparece a céu descoberto: os grupos ingleses que se
chamam a si mesmos "não conformistas", isto é, a agrupação dos que concordam só em sua
desconformidade a respeito da multidão ilimitada. Este ingrediente de juntarem-se os menos
precisamente para separar-se dos demais vai sempre misturado na formação de toda minoria. Falando do
reduzido público que ouvia um músico refinado, diz graciosamente Mallarmé que aquele público
salientava com a presença de sua escassez a ausência multitudinária.
A rigor, a massa pode definir-se, como fato psicológico, sem necessidade de esperar que apareçam os
indivíduos em aglomeração. Diante de uma só pessoa podemos saber se é massa ou não. Massa é todo
aquele que não se valoriza a si mesmo - no bem ou no mal - por razões especiais, mas que se sente "como
todo o mundo", e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais.
Imagine-se um homem humilde que ao tentar valorizar-se por razões especiais - ao perguntar de si para si
se tem talento para isto ou para aquilo, se sobressai em alguma ordem - adverte que não possui nenhuma
qualidade excelente. Este homem sentir-se-á medíocre e vulgar, e mal dotado; mas não se sentirá
"massa".
Quando se fala de "minorias seletas", a velhacaria habitual costuma tergiversar o sentido desta
expressão, fingindo ignorar que o homem seleto não é o petulante que se supõe superior aos demais, mas
o que exige mais de si que os demais, embora não consiga cumprir em sua pessoa essas exigências
superiores. E é indubitável que a divisão mais radical que cabe fazer na humanidade, é esta em duas
classes de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as
que não exigem de si nada especial, mas que para elas viver é ser em cada instante o que já são, sem
esforço de perfeição em si mesmas, bóias que vão à deriva.
Isto me lembra que o budismo ortodoxo se compõe de duas religiões distintas: uma, mais rigorosa e
difícil; outra, mais frouxa e trivial; ou Mahayana - "grande veículo" ou "grande carril" - e o Hinayana -
"pequeno veículo", "caminho menor". O decisivo é se pomos nossa vida num ou no outro veículo, a um
máximo de exigências ou a um mínimo.
A divisão da sociedade em massas ou minorias excelentes não é, portanto, uma divisão em classes
sociais, mas em classes de homens, e não pode coincidir com a jerarquização em classes superiores e
inferiores. Claro está que nas superiores, quando chegam a sê-lo e enquanto o forem de verdade há mais
verossimilitude em achar homens que adotam o "grande veículo", enquanto as inferiores estão
normalmente constituídas por indivíduos sem qualidade. Mas, a rigor, dentro de cada classe social há
massa e minoria autêntica. Como veremos, é característico do tempo o predomínio, ainda nos grupos cuja
tradição era seletiva, da massa e do vulgo. Assim, na vida intelectual, que por sua própria essência requer
e supõe a qualificação, adverte-se o progressivo triunfo dos pseudo-intelectuais inqualificados,
inqualificáveis e desclassificados por sua própria contextura. O mesmo nos grupos sobreviventes da
"nobreza" masculina e feminina. A seu turno, não é raro encontrar hoje entre os obreiros, que antes
podiam valer como o exemplo mais puro disto que chamamos "massa", almas egregiamente
disciplinadas.
Ora bem: existem na sociedade operações, atividades, funções da ordem mais diversa, que são, por
sua mesma natureza, especiais, e, conseqüentemente, não podem ser bem executadas sem dotes também
especiais. Por exemplo: certos prazeres de caráter artístico e luxuoso, ou bem as funções de governo e de
juízo político sobre os assuntos públicos. Antes eram exercidas estas atividades especiais por minorias
qualificadas - qualificadas, pelo menos, em pretensão -. A massa não pretendia intervir nelas: percebia-se
que se queria intervir teria congruentemente de adquirir esses dotes especiais e deixar de ser massa.
Conhecia seu papel numa saudável dinâmica social.
Se agora retrocedermos aos fatos enunciados a princípio, eles nos aparecerão inequivocamente como
núncios de uma mudança de atitude na massa. Todos eles indicam que esta resolveu avançar para o
primeiro plano social e ocupar os locais e usar os utensílios e gozar dos prazeres antes adstritos aos
poucos. É evidente que, por exemplo, os locais não estavam premeditados para as multidões, posto que
sua dimensão seja muito reduzida e o povo transborde constantemente deles, demonstrando aos olhos e
com linguagem visível o fato novo: a massa, que, sem deixar de sê-lo, suplanta as minorias.
Ninguém, creio eu, deplorará que as pessoas gozem hoje em maior medida e número que antes, já que
têm para isso os apetites e os meios. O mal é que esta decisão tomada pelas massas de assumir as
atividades próprias das minorias, não se manifesta, nem pode manifestar-se, só na ordem dos prazeres,
mas que é uma maneira geral do tempo. Assim - antecipando o que logo veremos -, creio que as
inovações políticas dos mais recentes anos não significam outra coisa senão o império político das
massas. A velha democracia vivia temperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmo
pela lei. Ao servir a estes princípios o indivíduo obrigava-se a sustentar em si mesmo uma disciplina
difícil. Ao amparo do princípio liberal e da norma jurídica podiam atuar e viver as minorias. Democracia
e Lei, convivência legal, eram sinônimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a
massa atua diretamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos.
É falso interpretar as situações novas como se a massa se houvesse cansado da política e encarregasse a
pessoas especiais seu exercício. Pelo contrário. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia
liberal. A massa presumia que, no final das contas, com todos os seus defeitos e vícios, as minorias dos
políticos entendiam um pouco mais dos problemas públicos que ela. Agora, por sua vez, a massa crê que
tem direito a impor e dar vigor de lei a seus tópicos de café. Eu duvido que tenha havido outras épocas da
história em que a multidão chegasse a governar tão diretamente como em nosso tempo. Por isso falo de
hiperdemocracia.
O mesmo acontece nas demais ordens, muito especialmente na intelectual. Talvez cometa eu um erro;
mas o escritor, ao tomar da pena para escrever sobre um tema que estudou intensamente, deve pensar que
o leitor médio, que nunca se ocupou do assunto, se o lê, não é com o fim de aprender algo dele, mas, pelo
contrário, para sentenciar sobre ele quando não coincide com as vulgaridades que este leitor tem na
cabeça. Se os indivíduos que integram a massa se acreditassem especialmente dotados, teríamos não mais
de um caso de erro pessoal, mas não uma subversão sociológica. O característico do momento é que a
alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito de vulgaridade e o impõe por toda a
parte. Como se diz na América do Norte: ser diferente é indecente. A massa atropela tudo que é
diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo, quem não pense
como todo o mundo, corre o risco de ser eliminado. E claro está que esse "todo o mundo" não é "todo o
mundo". "Todo o mundo" era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias discrepantes,
especiais. Agora todo o mundo é só a massa.
II. A ASCENSÃO DO NÍVEL HISTÓRICO
Este é o fato formidável do nosso tempo, descrito sem ocultar a brutalidade de sua aparência. É,
ademais, de uma absoluta novidade na história de nossa civilização. Jamais, em todo o seu
desenvolvimento, aconteceu nada semelhante. Se temos de achar algo semelhante, teríamos de pular fora
de nossa história e submergir-nos em um orbe, em um elemento vital, completamente diferente do nosso;
teríamos de insinuar-nos no mundo antigo, e chegar a sua hora de declinação. A história do Império
romano é também a história da subversão, do império das massas que absorvem e anulam as minorias
dirigentes e se colocam em seu lugar. Então se produz também o fenômeno da aglomeração, do cheio.
Por isso, como observou muito bem Spengler, foi preciso construir, como se faz agora, edifícios
enormes. A época das massas é a época do colossal (27).
Vivemos sob o brutal império das massas. Perfeitamente; já chamamos duas vezes "brutal" a este
império, já pagamos nosso tributo ao deus dos tópicos; agora, com o bilhete na mão, podemos
alegremente ingressar no tema, ver por dentro o espetáculo. Ou supunha-se que eu ia contentar-me com
essa descrição, talvez exata, mas externa, que é só a fachada, o frontispício sob os quais se apresenta o
fato tremendo quando é olhado desde o passado? Se eu deixasse aqui este assunto e estrangulasse meu
presente ensaio, ficaria o leitor pensando, muito justamente, que este fabuloso advento das massas à
superfície da história não me inspirava outra coisa senão algumas palavras displicentes, desdenhosas, um
pouco de abominação e outro pouco de repugnância; a mim, de quem é notório que sustento uma
interpretação da história radicalmente aristocrática (28) É radical, porque eu não disse nunca que a
sociedade humana deva ser aristocrática, mas muito mais que isso. Eu disse e continuo crendo, cada dia
com mais enérgica convicção, que a sociedade humana é aristocrática sempre, queira ou não, por sua
própria essência, até o ponto de que é sociedade na medida em que seja aristocrática, e deixa de sê-lo na
medida em que se desaristocratize. Bem entendido que falo da sociedade e não do Estado. Ninguém pode
acreditar que diante deste fabuloso encrespamento da massa, seja o aristocrático contentar-se com fazer
um breve trejeito amaneirado, como um fidalgote de Versalhes. Versalhes - entende-se esse Versalhes
dos trejeitos - não é aristocracia, é o seu oposto: é a morte e a putrefação de uma magnífica aristocracia.
Por isso, de verdadeiramente aristocrático só restava naqueles seres a graça digna com que sabiam
receber em seu pescoço a visita da guilhotina; aceitavam-na como o tumor aceita o bisturi. Não: a quem
sinta a missão profunda das aristocracias, o espetáculo da massa o incita e aviva como ao escultor a
presença do mármore virgem. A aristocracia social não se parece nada a esse grupo reduzidíssimo que
pretende assumir para si íntegro o nome de "sociedade", que se chama a si mesmo "a sociedade" e que
vive simplesmente de convidar-se ou de não convidar-se. Como tudo no mundo tem sua virtude e sua
missão, também tem as suas dentro do vasto mundo este pequeno "mundo elegante", mas uma missão
muito subalterna e incomparável com a faina hercúlea das autênticas aristocracias. Eu não teria
inconveniente em falar sobre o sentido que possui essa vida elegante, em aparência tão sem sentido; mas
nosso tema é agora outro de maiores proporções. Certamente que essa mesma "sociedade distinta" está
de acordo com o tempo. Muito me fez meditar certa damazinha em flor, toda juventude e atualidade,
estrela de primeira grandeza no zodíaco da elegância madrilenha, porque me disse: "Eu não tolero um
A rebelião das massas.
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baile ao qual tenham sido convidadas menos de oitocentas pessoas". Através desta frase vi que o estilo
das massas triunfa hoje sobre toda a área da vida e se impõe ainda naqueles últimos rincões que pareciam
reservados aos happy few.
Repilo, pois, igualmente, toda interpretação de nosso tempo que não descubra a significação positiva
oculta sob o atual império das massas e das que o aceitam, beatamente, sem estremecer de espanto. Todo
destino é dramático e trágico em sua profunda dimensão. Quem não tenha sentido na mão palpitar o
perigo do tempo, não chegou à entranha do destino, não fez mais senão acariciar sua mórbida face. No
nosso, o ingrediente terrível é posto pela atropelante e violenta sublevação moral das massas, imponente,
indomável e equívoca como todo destino. Para onde nos leva? É um mal absoluto, ou um bem possível?
Aí está, colossal, instalada sobre nosso tempo como um gigante, cósmico sinal de interrogação, o qual
tem sempre uma forma equívoca, com algo, efetivamente, de guilhotina ou de forca mas também com
algo que quisera ser um arco triunfal!
O fato de que necessitamos submeter a anatomia pode formular-se sob estas duas rubricas: primeira,
as massas exercitam hoje um repertório vital que coincide, em grande parte, com o que antes parecia
reservado exclusivamente às minorias; segunda, ao mesmo tempo as massas tornaram-se indóceis diante
das minorias; não lhes obedecem, não as seguem, não as respeitam, mas, pelo contrário, as puseram de
lado e as suplantam.
Analisemos a primeira rubrica. Quero dizer com ela que as massas gozam dos prazeres e usam os
utensílios inventados pelos grupos seletos e que antes só estes usufruíam. Sentem apetites e necessidades
que antes se qualificavam de refinamentos, porque eram patrimônios de poucos. Um exemplo trivial: em
1820 não havia em Paris dez quartos de banho em casas particulares; vejam-se as Memórias da comtesse
de Boigne. Mais ainda: as massas conhecem e empregam hoje, com relativa suficiência, muitas das
técnicas que antes só os indivíduos especializados manejavam.
E não apenas as técnicas materiais, mas, o que é mais importante, as técnicas jurídicas e sociais. No
século XVIII, certas minorias descobriram que todo indivíduo humano, pelo mero fato de nascer, e sem
necessidade de qualificação alguma, possuía certos direitos políticos fundamentais, os chamados direitos
do homem e do cidadão, e que, a rigor, estes direitos comuns a todos são os únicos existentes. Todo outro
direito imposto a dotes especiais ficava condenado como privilégio. Isto foi, primeiro, um puro teorema e
idéia de uns poucos; depois, esses poucos começaram a usar praticamente dessa idéia, a impô-la e
reclamá-la: as minorias melhores. Não obstante, durante todo o século XIX a massa, que se ia
entusiasmando com a idéia desses direitos como com um ideal, não os sentia em si, não os exercitava
nem fazia valer senão de fato, sob as legislações democráticas, continuava vivendo, continuava
sentindo-se a si mesma como no antigo regime. O "povo" - segundo então era chamado -, o "povo" sabia
já que era soberano; mas não acreditava nisso. Hoje aquele ideal converteu-se numa realidade, não já nas
legislações, que são esquemas externos da vida pública, mas no coração de todo indivíduo, quaisquer que
sejam as suas idéias, inclusive quando as suas idéias são reacionárias; quer dizer, inclusive quando
esmaga e tritura as instituições onde aqueles direitos se sancionam. A meu juízo, quem não entende esta
curiosa situação das massas não pode compreender nada do que hoje começa a acontecer no mundo. A
soberania do indivíduo não qualificado, do indivíduo humano genérico e como tal, passou, de idéia ou
ideal jurídico que era, a ser um estado psicológico constitutivo do homem médio. E note-se bem: quando
algo que foi ideal se faz ingrediente da realidade, inexoravelmente deixa de ser ideal. O prestígio e a
magia autorizante, que são atributos do ideal, que são seu efeito sobre o homem, se volatilizam. Os
direitos niveladores da generosa inspiração democrática converteram-se, de aspirações de ideais, em
apetites de supostos inconscientes.
Ora bem: o sentido daqueles direitos não era outro senão tirar as almas humanas de sua interna
servidão e proclamar dentro delas certa consciência de senhorio e dignidade. Não era isto que se queria?
Que o homem médio se sentisse amo, dono, senhor de si mesmo e de sua vida? Já está conseguido. Por
que se queixam os liberais, os democratas, os progressistas de há 30 anos? Ou é que, como os meninos
querem uma coisa, mas não suas conseqüências? Quer-se que o homem médio seja senhor. Então não
estranhe que atue por si, que reclame todos os prazeres, que imponha decidido sua vontade, que se negue
a toda servidão, que não continue dócil, que cuide de sua pessoa e seus ócios, que componha sua
indumentária: são alguns dos atributos perenes que acompanham a consciência de senhorio. Hoje os
achamos residindo no homem médio, na massa.
Julgamos pois, que a vida do homem médio está agora constituída pelo repertório vital que antes
caracterizava só as minorias culminantes. Ora bem: o homem médio representa a área sobre que se move
a história de cada época; é na história o que é o nível do mar na geografia. Se, pois, o nível médio se acha
hoje onde antes só tocavam as aristocracias, quer dizer-se lisa e lhanamente que o nível da história
ascendeu de repente - depois de largas e subterrâneas preparações, mas em sua manifestação, de repente
-, de um salto, numa geração. A vida humana, em totalidade, ascendeu. O soldado do dia, diríamos, tem
muito de capitão; o exército humano se compõe já de capitães. Basta ver a energia, a resolução, o
desembaraço com que qualquer indivíduo luta hoje pela existência, agarra o prazer que passa, impõe sua
decisão.
Todo o bem, todo o mal do presente e do imediato porvir tem neste ascenso geral do nível histórico
sua causa e sua raiz.
Mas agora nos ocorre uma advertência impremeditada. Isso, que o nível médio da vida seja o das
antigas minorias, é um fato novo na história; mas era o fato nativo, constitucional, da América. Pense o
leitor, para ver clara minha intenção, na consciência de igualdade jurídica. Esse estado psicológico de
sentir-se amo e senhor de si e igual a qualquer outro indivíduo, que na Europa só os grupos preeminentes
conseguiam adquirir, é o que desde o século XVIII, praticamente desde sempre, acontecia na América. E
nova coincidência, ainda mais curiosa! Ao aparecer na Europa esse estado psicológico do homem médio,
ao subir o nível de sua existência integral, o tom e maneiras da vida européia em todas as ordens adquire
de repente uma fisionomia que fez muitos dizer: "A Europa está se americanizando". Os que isto diziam
não davam ao fenômeno importância maior; acreditavam que se tratava de uma leve mudança nos
costumes, de uma moda, e, desorientados pelo parecido externo, o atribuíam a não se sabe que influxo da
América na Europa. Com isso, a meu juízo, banalizou-se a questão, que é muito mais sutil e
surpreendente e profunda.
A galanteria tenta agora subornar-me para que eu diga aos homens de Ultramar que, com efeito, a
Europa se americanizou e que isto é devido a um influxo da América na Europa. Mas não: a verdade
entra agora em colisão com a galanteria, e deve triunfar. A Europa não se americanizou. Não recebeu
ainda influxo grande da América. Tanto um como outro, eventualmente, iniciam-se agora mesmo; mas
não se produziram no próximo passado, de que o presente é broto. Há aqui um cúmulo desesperante de
idéias falsas que nos estorvam a visão tanto aos americanos como aos europeus. O triunfo das massas e a
conseguinte magnífica ascensão de nível vital aconteceu na Europa por razões internas, depois de dois
séculos de educação progressista das multidões e de um paralelo enriquecimento econômico da
sociedade. Mas isso é que o resultado coincide com o traço mais decisivo da existência americana; e por
isso, porque coincide a situação moral do homem médio europeu com a do americano, aconteceu que
pela primeira vez o europeu entende a vida americana, que antes lhe era um enigma e um mistério. Não
se trata, pois, de um influxo, que seria um pouco estranho, que seria um refluxo, mas do que menos se
suspeita ainda: trata-se de uma nivelação. Desde sempre se entrevia obscuramente pelos europeus que o
nível médio da vida era mais alto na América que no velho continente. A intuição, pouco analítica, mas
evidente deste fato, deu origem à idéia, sempre aceita, nunca posta em dúvida, de que a América era o
porvir. Compreender-se-á que idéia tão ampla e tão arraigada não podia vir do vento, como dizem que as
orquídeas se criam sem raízes no ar. O fundamento era aquela entrevisão de um nível mais elevado na
vida média de Ultramar, que contrastava com o nível inferior das minorias melhores da América
comparadas com as européias. Mas a história, como a agricultura, nutre-se dos vales e não dos cumes, da
altitude média social e não das eminências.
Vivemos em tempo de nivelações: nivelam-se as fortunas, nivela-se a cultura entre as diferentes
classes sociais, nivelam-se os sexos. Pois bem: também se nivelam os continentes. E como o europeu se
achava vitalmente mais baixo, nesta nivelação não fez senão ganhar. Portanto, olhada deste lado, a
subversão das massas significa um fabuloso aumento de vitalidade e possibilidades; tudo ao contrário,
pois, do que ouvimos tão amiúde sobre a decadência da Europa. Frase confusa e tosca, onde não se sabe
bem de que se fala, se dos Estados europeus, da cultura européia ou do que está sob tudo isso e importa
infinitamente mais que tudo isto, a saber: da vitalidade européia. Dos Estados e da cultura européia
diremos algum vocábulo mais adiante - e talvez a frase supradita valha para eles -; mas quanto à
vitalidade, convém desde logo fazer constar que se trata de um erro crasso. Dita de outro modo, talvez
minha afirmação pareça mais convincente e menos inverossímil; digo, pois, que hoje um italiano médio,
um espanhol médio, um alemão médio, se diferenciam menos em tom vital de um ianque ou de um
argentino que há trinta anos. E este é um dado que os americanos não devem esquecer.