A primeira vez que vi esse filme eu não dei nada por ele. Umas três estrelas por aí, porém, vendo agora pela segunda vez, eu dou uns 4. O filme em si não é nenhuma obra prima e alguns detalhes nele soam, se não clichês, meio absurdos: todo um perrengue é feito para encontrar o mendigo na casa, para de repente cair uma ficha na consciência, uma cena sensual (Aliás, porque aquela roupinha de colegial de filme pornô?) quase desnecessária (note, quase, não por completo), um namoro meio tosco que serve só para dar furo para o mendigo fugir e uma morte que nem é sentida. Mas, mesmo essas cenas que soam uma agressão à paciência do telespectador, eu sinto uma relação de amor e ódio aqui. É que algumas cenas citadas realmente soam absurdas, mas pelo conceito do filme (o conceito em si muito bom), podem ser levadas para um outro nível. Por exemplo, a primeira coisa que vemos no filme são os baixos níveis de pobreza e violência que esse evento ("O expurgo") oferece. Fica claro que a população carente nada mais serve naquela vida para saciar o sádico humor dos mais ricos, tanto que a cena da conversa no jantar, com aquelas alfinetas típicas de filme/família, até mesmo a possibilidade de quase trepar, todas tão supérfluas, mas acentuam a diferença da realidade. Enquanto os Sandins comem bem, trocam alfinetas, se exercitam por trás de sua fortaleza, lá fora, aqueles que não têm dinheiro, provavelmente começam a ser abatidos, tendo assim uma estatística tão baixa de pobreza. Quando se mantêm a segurança de um povo polarizada - e o reflexo no Espírito Santo foi exatamente isso, uma segurança polarizada na mão do Estado, o mesmo que falhou nesse dever e falhará muitas outras vezes -, negando-se o direito de cada um se defender, só os ricos passam a ter direito à sua própria proteção. The Purge apenas deixou isso na forma mais crua, assim é possível ver uma semi-fortaleza com armas guardadas, "só por segurança".
É claro que também pode falar sobre a liquidez da segurança, no fim, se quisessem, poderiam sair derrubando aquilo tudo, mas o discurso do vilão deixa claro quem é o alvo. Bauman tem um livro sobre liquidez da segurança, mas nunca cheguei a ler para dar pitaco.
Há também uma questão moral aqui: os adultos parecem anestesiados e até chegam a colocar um símbolo de apoio ao expurgo anual, quando (mesmo naquela cena que achei tosca onde do nada mudam de ideia) começam a notar o que estão fazendo (na verdade, o fato deles mostrarem público apoio ao evento, nada mais é que não querer ir contra a correnteza, mesmo que dentro de si haja a verdade, ir contra o grupo dominante é perigoso). "Isso é errado" diz a esposa numa noite onde nada é proibido. Aliás. a questão da alta violência (antes de criarem o expurgo) não era uma questão de maldade inerente ao ser humano, mas uma questão de valores próprios e de se ver como uma sociedade. A vizinhança que parecia tão dócil e na primeira oportunidade se torna um lobo, mostra uma sociedade de aparência e principalmente, feita a base do porrete (que aqui nada mais é do que algo simplesmente domado pela imposição da lei, porém carente de qualquer valor além disso, os vizinhos nada mais do que alimentaram uma inveja do sucesso alheio e, vivendo em um país que acha mais fácil pôr para fora do que domar seus demônios, sempre aguardaram sua hora de agir, sem poderem agir até aquela noite fatídica, por causa dos status dos Sandins e da alta segurança, ou pelo menos aparente segurança).
O filme é curto, mas vai direto no cerne. Mal executado de fato, mas o conceito é o que salva tudo. E no fim ver o pai da família morrendo por aqueles que ama, ao invés de ter imolado aquele outro homem oferecendo ele aos lobos que pretendiam matá-lo, e ver a sua senhora tendo aquela atitude final, de piedade aos vizinhos, quando poderia pagar na mesma moeda, dá um toque de esperança (da qual não deixo de pensar em aspectos religiosos -na figura salvífica de Cristo-, sob, caso contrário, pena de tornar o ato estéril, tal como aquela sociedade que se ajoelha frente aos corpos que serviram para "purificá-los" nos créditos finais, ótimos créditos finais aliás).